O que é a ópera de Pequim/ Jingju?
A ópera de Pequim é a mais célebre das centenas de xiqu (戏曲), os teatros originados na China. Trata-se de um estilo teatral altamente estilizado e híbrido, que combina música, canto, declamação, dança, pantomimas e acrobacias. Cunhada pela perspectiva europeia, a designação “ópera de Pequim” evidencia o aspecto musical em detrimento dos outros, igualmente relevantes. Embora limitante, o termo é o mais empregado mundo afora e terminou abraçado pela China em sua comunicação para os públicos estrangeiros. Desde a sua gênese, o gênero possuiu diferentes nomes no contexto chinês, terminando mais conhecido como Jingju (京剧), isto é, “o teatro da capital”.
Em 2010, o Jingju foi reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Para os chineses, é um dos tesouros do ideal de guocui (国粹), a quintessência nacional, também composta pelas artes marciais, a caligrafia e a medicina chinesa.
Ao longo dos séculos, a estética e o repertório do Jingju têm sido moldados por questões sociopolíticas, históricas e culturais de diferentes momentos – do regime imperial, às fundações da República da China, em 1912, e da República Popular da China, em 1949, até as iniciativas da contemporaneidade rumo à sua preservação e difusão.
Origens e desenvolvimento
O surgimento do Jingju remonta ao final do século XVIII, durante a Dinastia Qing (1644–1912). O evento catalisador para a sua formação é comumente atribuído pela historiografia hegemônica às celebrações de aniversário do imperador Qianlong (1711 – 1799), em 1790, quando viajaram para Beijing quatro companhias de Anhui: Sanqing (三庆班), Sixi (四喜班), Chuntai (春台班) e Hechun (和春班). Terminando por ali se estabelecerem, as ditas Quatro Grandes Trupes tanto foram influenciadas quanto influenciaram a cena local, propiciando o desenvolvimento do Jingju, que, nas décadas seguintes, foi se consolidando em seu estilo próprio.
Emprestadas de tradições vindas de diferentes partes do território chinês, as suas melodias, coreografias, tipos de personagens e enredos são bastante plurais. Por exemplo, a sua base musical pi-huang (皮黄) descende dos sistemas erhuang (二黄), de Anhui, e xipi (西皮), de Hubei, enquanto os seus tons agudos de canto derivam do Qinqiang (秦腔), um teatro de Shaanxi. Também o Kunqu (昆曲), um gênero de Kunshan que já desfrutava de grande estima entre as elites, influenciou os seus movimentos corporais, que foram igualmente enriquecidos pelas acrobacias de teatros folclóricos (民间小戏), muito mais populares entre os camponeses.
Entre os diversos aspectos característicos do Jingju, destaca-se o seu caráter evocativo. Ou seja, não há cenários ousados ou situações realisticamente construídas. A depender de suas aparências e posicionamentos, poucos objetos, como uma mesa e cadeiras, representam palácios, quartos ou tendas militares. Apenas por meio de gestos convencionados os atores encenam terem cavalgado longas distâncias, estarem em uma jornada de barco, abrirem portas ou comerem e brindarem. Ainda, as personagens não são sujeitos individualizados, mas sim tipos definidos por figurinos e maquiagens pré-estabelecidos, divididos em quatro grupos principais: as personagens masculinas sheng (生); as femininas, dan (旦); os rostos pintados, jing (净); e as figuras cômicas, chou (丑). Cada categoria possui diferentes subtipos, como jovens, anciões ou guerreiros.
Personagem sheng (生)
Personagem dan (旦)
Personagem jing (净)
Personagem chou (丑)
Cem retratos de personagens de ópera de Pequim, artista não identificado, final do século XIX/ início do século XX
[Coleção do Metropolitan Art Museum, Nova York, domínio público]
O patrocínio imperial e o apreço decisivo da imperatriz Cixi
No século XIX, o Jingju era encenado em casas de chá de Beijing que podiam acomodar centenas de espectadores, bem como em festivais, distinguindo-se, a princípio, como um entretenimento identificado ao povo. Porém, o patrocínio da imperatriz Cixi (1835 – 1908), governante de facto do império em suas últimas décadas, reconfigurou significativamente o gênero, fazendo-o ser publicamente visto como um produto apreciado pelo poder dominante. Entusiasta dos palcos, Cixi frequentemente convidava trupes para se apresentarem nos palcos privados da corte, e a sua influência parece ter ido além da mera apreciação como espectadora, já que opinava sobre os padrões das encenações e fornecia subsídios para que os seus intérpretes alcançassem maior rigor técnico.
No mesmo período, o Jingju se irradiou para fora de Beijing. Graças a meios de transporte mais rudimentares, como carroças e pequenas embarcações, mas também a estradas de ferro e a barcos a vapor, tanto os artistas quanto o repertório circulavam. Novas mídias, como tabloides e jornais com gravuras impressas, fotografias e fonógrafos, também auxiliavam na difusão de suas personalidades e peças.
Assim, quanto a Dinastia Qing eventualmente ruiu após as Guerras do Ópio (1839 – 1842 e 1856 – 1860), conflitos internos e invasões das terras chinesas por forças colonialistas europeias, o Jingju já havia conquistado um prestígio cultural e uma disseminação vitais para a sua sobrevivência em uma nova China.
Imperatriz Cixi, fotografia tirada em 1890 (data estimada)
[Domínio público]
[Foto: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
[Foto: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
Concluído em 1772, durante o governo de Qianlong, o edifício para apresentações teatrais foi construído na Cidade Proibida para garantir à corte o seu entretenimento particular. O nome significa "prédio para ver o que é", em referência à noção de que obras teatrais auxiliariam a enxergar e compreender o real para além do mundo ficcional. No final do século XIX e primeiros anos do XX, foi frequentemente utilizado por Cixi para assistir a encenações de Jingju.
[Foto: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
[Foto: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
O Grande Palco se localiza dentro do Jardim da Virtude e da Harmonia, cuja construção foi iniciada em 1891 e concluída em 1895, no Palácio de Verão, utilizado pela família imperial para retiros sazonais. A área para encenação contava com dispositivos como placas giratórias e uma máquina de água por pressão, que garantiam efeitos especiais às performances. Cixi tinha o seu local reservado para assistir às atrações ali apresentadas.
Transição e adaptações na República da China
O colapso do sistema imperial em 1912 e o estabelecimento da República da China trouxeram desafios às heranças intelectuais e artísticas desenvolvidas até então. No processo de gestação da primeira república, legados como o Jingju passaram a ser vistos como resquícios de um passado a ser rejeitado e superado. Ideologias pulsantes naquele instante, como o Movimento da Nova Cultura (新文化运动), opunham-se aos valores confucionistas e se inspiravam em ideias importadas da Europa (como o cientificismo, o naturalismo e o marxismo). Segundo essa lógica, o Jingju deveria ser abandonado em favor do huaju(话剧)– literalmente, o teatro falado. Então recém-criado na China, o huaju não possuía musicalização, danças ou acrobacias, tampouco personagens-tipo, e se inspirava nas obras de Henrik Ibsen, Anton Tchekhov e Bernard Shaw. Paralelamente, no meio urbano, sobretudo em Shanghai, espalhavam-se casas de espetáculo ao estilo europeu, com iluminação elétrica, palcos com boca de cena e intrincados cenários realistas, onde as trupes abraçavam enredos voltados a temas contemporâneos.
Apesar das tensões ideológicas e disputas criativas, o Jingju conseguiu não apenas manter a sua relevância, como, após algumas mudanças formais e temáticas, emergir como o “teatro nacional” (guoju, 国剧) da jovem república. Figura central nesse processo, o teórico e dramaturgo Qi Rushan (1875–1962) documentou sistematicamente as suas técnicas performativas, códigos e enredos, promovendo uma série de reformas graças à parceria com Mei Lanfang (1894 – 1961), ator de papéis dan, que viria a se tornar o mais célebre astro da história da cena chinesa. Atuando como seu conselheiro e dramaturgo, Qi auxiliou Mei a criar coreografias e novos moldes de encenação. Juntos, expandiram o repertório do gênero e promoveram diversas inovações para deliberadamente fazer do Jingju uma forma artística com ares requintados, mais complexa e atrativa tanto para os chineses quanto para os estrangeiros.
Assumindo o controle da República da China a partir do final dos anos 1920, o Partido Guomindang aliou-se a Qi e Mei para a promoção do Jingju. Por meio de apresentações oferecidas a autoridades políticas internacionais na residência de Mei, em Pequim, e de turnês ao Japão, aos Estados Unidos e à União Soviética, o Jingju se tornou uma ferramenta essencial da diplomacia cultural do país em formação, sendo apresentado como o seu teatro oficial. Nesse contexto, em 1930 Mei lotou as plateias da Broadway nova-iorquina, nada habituadas a espetáculos tão pouco familiares aos estadunidenses. Ainda, após ser visto em Moscou, em 1935, o ator inspirou Bertolt Brecht (1898 – 1956) a formular a sua teoria do “efeito de distanciamento”.
Palco do Salão Huguang/ 湖广会馆大戏楼, Beijing
[Foto: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
Construído em 1807, o complexo de Huguang foi o local onde o Partido Guomindang foi fundado, em 1912. O teatro localizado em suas dependências se consolidou como um dos principais palcos da Beijing do início do século XX e contou com apresentações dos maiores artistas do Jingju, incluindo Mei Lanfang.
A difusão global do Jingju nos anos iniciais da República Popular da China
Nos anos 1950, logo após o fim do conflito civil entre o Guomindang e o Partido Comunista, que culminou com a fundação da República Popular da China, em 1949, o Jingju tornou-se outra vez um instrumento de diplomacia cultural. Em sua busca por legitimidade perante o restante do globo, a nova nação passou a investir em diálogos interculturais para fomentar alianças e promover uma imagem favorável de si. Já alastrado e bem-quisto entre os chineses, e beneficiado pelo sucesso internacional de Mei, o Jingju voltou a ser oferecido à apreciação estrangeira como uma herança autêntica da Nova China.
Apesar das cisões e barreiras ideológicas da Guerra Fria, turnês intercontinentais de companhias de Jingju permitiram que a República Popular da China visitasse dezenas de países — incluindo o Brasil, onde a Trupe Artística da China (中国艺术团) apresentou o espetáculo Ópera de Pequim – Teatro clássico da China, em 1956. Paralelamente, no plano doméstico, o Partido Comunista promoveu a profissionalização e institucionalização das trupes, reorientando o gênero como uma arte popular adaptável aos seus ideais revolucionários.
Jingju na China contemporânea
Na China atual, o Jingju ocupa uma posição paradoxal: é, ao mesmo tempo, amplamente descrito como a mais representativa das artes cênicas nacionais, e uma tradição que luta para manter a sua vitalidade na era de mídias digitais e constantes mudanças nas preferências de entretenimento. O governo chinês busca apoiar o Jingju e apresentá-lo às novas gerações por meio de financiamentos de companhias, inclusão de conteúdos em currículos escolares e universitários, programas de formação de espectadores, adaptações intermidiáticas e competições televisivas. Também outros xiqu, como o Kunqu e as ditas Ópera Cantonesa (粤剧) e Ópera de Sichuan (川剧), são impulsionados em níveis regionais.
Artistas e trupes têm adotado experimentações, fundindo o Jingju com técnicas teatrais diversas, adaptando narrativas contemporâneas e integrando tecnologias digitais à cenografia. Esses esforços ressaltam a resiliência do Jingju, uma forma artística viva, em constante tensionamento e adaptação.
Na imagem superior, menor: Grande Teatro Chang'An (长安大戏院 ), em Beijing. A sua primeira sede foi construída em 1937, e logo a programação ganhou grande popularidade. Em 1996, foi transferido para um novo prédio, em cuja entrada se vê um enorme rosto pintado conforme os parâmetros do Jingju. Atualmente, é um dos locais mais frequentados por estrangeiros que desejam conhecer a arte.
Na imagem inferior, menor: final de uma apresentação no Grande Teatro Mei Lanfang (梅兰芳大剧院), sede da Companhia Nacional de Ópera de Pequim (中国国家京剧院 ), em Beijing. Inaugurada em 1955, sob a égide do Ministério da Cultura e Turismo da República Popular da China, teve Mei Lanfang como o seu primeiro presidente e é, hoje, a trupe de xiqu mais renomada no país.
Na imagem maior: parte do museu dedicado ao Jingju localizado dentro do Salão Huguang, em Beijing. Nele, há explicações sobre a gênese do Jingju e seus intérpretes mais celebrados, objetos e materias relativos à sua encenação, bem como conteúdos interativos audiovisuais.
[Fotos: Esther Marinho Santana, todos os direitos reservados]
Como é o Jingju em cena?
No século XIX, performances de Jingju poderiam durar longas horas. Atualmente, é mais comum que sejam apresentadas ao longo de duas ou três horas. Quando encenados para o público estrangeiro, os espetáculos geralmente trazem combinações de cenas de peças clássicas, com menos conteúdo cantado em chinês e maior ênfase nas acrobacias.
No vídeo abaixo é possível ver trechos das apresentações da Companhia Nacional de Ópera de Pequim durante a sua turnê no Brasil, em 2024:
Para se aprofundar no Jingju...
Infelizmente quase não há estudos em língua portuguesa sobre o Jingju. Na seção de Publicações, é possível ler os artigos gerados pela pesquisa.
Abaixo estão algumas obras acadêmicas, em inglês.
Fu, Jin. Chinese Theatre. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
Goldstein, Joshua. Drama Kings: Players and Publics in the Re-Creation of Peking Opera, 1870 – 1937. Berkeley: University of California Press, 2007.
Guy, Nancy. Peking Opera and Politics in Taiwan. Chicago: University of Illinois Press, 2005.
Lei, Daphne P. Operatic China: Staging Chinese Identity Across the Pacific. New York: Palgrave Macmillan, 2006.
Li, Ruru. The Soul of Beijing Opera: Theatrical Creativity and Continuity in the Changing World. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2010.
Mackerras, Colin. Chinese Theatre: From its Origins to the Present Day. Honolulu: University of Hawaii Press, 1988.
Rolston, David L. Inscribing Jingju/ Peking Opera: Textualization and Performance, Authorship and Censorship of the “National Drama” of China from the Late Qing to the Present. Leiden: Brill, 2021.
Tian, Min. Mei Lanfang and the Twentieth-Century International Stage: Chinese Theatre Placed and Displaced. New York: Palgrave Macmillan, 2012.
Xu, Chengbei. Peking Opera. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.